Por Que a Indicação para Enxaqueca Continua Fora da Bula – Off-Label – de Medicamentos Preventivos Consagrados?
Qual a importância da indicação terapêutica para enxaqueca constar por escrito dentro da bula – em inglês, on-label – ou fora da bula – off-label?
No primeiro livro que escrevi sobre enxaqueca, há 25 anos (um quarto de século!), eu explicava que os medicamentos preventivos para enxaqueca são, na sua quase totalidade, “emprestados” de outras especialidades. Incrível como até hoje isso não mudou praticamente nada!
Quer um bom exemplo? Os antidepressivos! Há muitas décadas descobriu-se que antidepressivos, além de tratar depressão, tratam também enxaqueca, mesmo em quem nunca teve depressão na vida. De fato há quase 40 anos o antidepressivo amitriptilina vem sendo prescrito por médicos no mundo inteiro para no intuito de reduzir a frequência, intensidade e duração de crises de enxaqueca.
Até hoje a amitriptilina possui lugar de destaque na lista de remédios preventivos para enxaqueca, nos livros-texto escritos pelas maiores autoridades médicas mundiais no tratamento da enxaqueca (e também no bloco de receituário deles). Porém apesar do uso consagrado mundialmente pela medicina, até hoje, nem a amitriptilina, nem qualquer um entre todos os antidepressivos que existem, listam em suas bulas a enxaqueca como uma das possíveis indicações para o uso desses medicamentos. Em outras palavras, a indicação de antidepressivos para enxaqueca, oficialmente, não existe. O uso consagrado dos antidepressivos para enxaqueca, não é endossado pelas autoridades regulamentadoras (no Brasil a agência regulamentadora é a Vigilância Sanitária, e nos Estados Unidos, o FDA – Food and Drug Administration). Consequentemente, a indicação para enxaqueca fica fora da bula – off-label é o termo em inglês para definir esta situação.
E que importância tem isso, você poderia se perguntar?
O Que Quer Dizer “Off-label” e “On-label”?
Quem determina o que pode ou não pode entrar numa bula, em termos de indicações para um remédio (ou seja, aquela parte da bula que diz para que serve o remédio), são as agências regulamentadoras – no Brasil, a Vigilância Sanitária. Isso é muito bom e protege a saúde pública. Assim ninguém pode sair por aí criando bulas a torto e direito, atribuindo “mil e uma utilidades” na bula para o remédio que fabrica e/ou coloca no mercado. Na bula somente podem constar aquelas indicações baseadas em evidências científicas. Assim, sempre que a indústria farmacêutica inventa um remédio, precisa produzir estudos científicos criteriosos comprovando, para as agências regulamentadoras, que para uma dada doença, este remédio é significativamente melhor que não tomar remédio nenhum. Cada doença cuja ação do remédio satisfaz esses critérios estatísticos, ganha das agências regulamentadoras do mundo o direito de ser mencionada na bula e constar da lista de indicações para esse remédio. Esses critérios para que uma dada doença possa ser mencionada na bula variam de agência regulamentadora para agência regulamentadora, e historicamente falando, são derivados do sistema de regulamentação dos remédios nos Estados Unidos – daí os termos off-label e on-label, em inglês, utilizados no jargão médico brasileiro. O termo on-label se traduz para o português, literalmente, dentro da bula. E o termo off-label quer dizer fora na bula.
Além das indicações de um dado remédio (doenças para as quais o remédio “serve”, oficialmente falando), constam na bula as dosagens (“posologia”), vias de administração (comprimidos, comprimidos revestidos, cápsulas, supositórios, suspensão oral, spray nasal, injeção intramuscular, intravenosa, subcutânea, etc), faixa etária apropriada para o uso do medicamento (crianças versus adultos), uso (ou não) na gravidez, amamentação, etc.
Exemplo de uso de remédio fora da bula – off label
Se para uma determinada droga – vamos continuar no nosso exemplo, amitriptilina – consta na bula a indicação para uso na depressão e nada consta sobre enxaqueca, então dizemos que o uso da amitriptilina para enxaqueca é fora da bula – off label.
Importante ressaltar que a “culpa” de um determinado uso para um remédio ser ou não fora da bula – off label, não é, nem de longe, das agências regulamentadoras. A Vigilância Sanitária não teria o menor problema em regulamentar e ampliar com todo prazer a indicação de um dado remédio para uma dada doença, desde que sejam satisfeitas certas exigências importantes no tocante à documentação comprovando a eficácia e segurança deste medicamento para aquela doença. Não é nenhum absurdo um remédio ser lançado com uma indicação específica e ir, com o tempo, ganhando uma ou mais indicações adicionais dentro da bula – on-label.
E como é que uma doença, para a qual o uso de um determinado remédio era fora da bula – off-label, passa a ganhar espaço dentro da bula – on-label?
Prescrever fora da bula – off-label – abre caminho para descoberta de novos usos da droga.
Desde que uma droga tenha sido liberada para o mercado pela Vigilância Sanitária, não há impedimento legal para o médico em prescrever essa droga para outras finalidades além daquela(s) que se encontra(m) dentro da bula. A essa prática dá-se o nome de prescrição fora da bula – off-label. É claro que os médicos não devem sair por aí prescrevendo off-label para qualquer doença, especialmente nos casos em que existem várias opções on-label já consagradas. Somente quando essas opções se esgotam, ou são inexistentes, é que se costuma recorrer à prescrição fora da bula – off-label.
Faz sentido, não é mesmo? Pura questão de bom-senso. Se o uso de um remédio para enxaqueca é on-label em adultos, porém não existem estudos suficientes para incluir na bula a indicação desse remédio em crianças, nada impede o médico de utilizar seu conhecimento, experiência e cálculo de dosagem, para adequar a posologia desse mesmo remédio para uma criança de 10 anos que se encontra prostrada de dor incapacitante e refratária. Poderíamos até dizer que não tentar fazer isso, somente com a desculpa de que seria um uso fora da bula – off-label – seria desumano. Felizmente a lei não impede o médico de fazer alguma coisa para aliviar o sofrimento e a dor de uma pessoa, ainda que essa “coisa” seja prescrever fora da bula – off-label.
E é exatamente assim que se descobrem novos usos para velhos remédios!
É assim que, há mais ou menos 40 anos atrás, alguém decidiu dar amitriptilina para quem não sofira de depressão, mas de enxaqueca!
Afinal, muitas pessoas com depressão também têm enxaqueca. Enxaqueca é uma doença muito comum, e nada impede uma pessoa de sofrer de duas doenças, por exemplo, enxaqueca e depressão. Quando alguns médicos decidiram prescrever antidepressivos para quem não tinha depressão mas tinha enxaqueca, constataram boa melhora da enxaqueca de uma boa parcela desses pacientes. Tudo nasceu da seguinte hipótese: “Se os pacientes com depressão melhoram da enxaqueca tomando esse remédio, e se eu prescrevesse o remédio para quem tem só enxaqueca e não depressão, será que esses pacientes poderiam melhorar da enxaqueca? Assim foi feito, e o resto é história. Graças a essa prescrição fora da bula – off-label, os antidepressivos são hoje parte integrante do tratamento da enxaqueca nos centros especializados no tratamento de enxaqueca no mundo inteiro, e ocupam lugar proeminente nos livros-texto para médicos sobre tratamento de enxaqueca.
Por que tantos anos passaram e a indicação continua off-label?
Se os antidepressivos são, há tantos anos, unanimidade tão grande entre médicos que se dedicam ao tratamento da enxaqueca ao redor do mundo, como se explica o fato que até hoje nenhum antidepressivo foi capaz de listar em sua bula a enxaqueca entre suas indicações? Em outras palavras: como podem os antidepressivos ser tão eficazes contra enxaqueca e ainda assim a bula deles não fazer menção à enxaqueca?
Não estamos mais falando de remédios novos, cuja aplicação na enxaqueca ainda está em fase de hipótese ou teste – mas sim de drogas como a amitriptilina e nortriptilina, de prescrição consagrada há décadas no tratamento da enxaqueca. Por que a indicação para enxaqueca não foi para a bula? Por que seu uso para enxaqueca continua off-label?
Nesse caso a única explicação é que existe algo errado:
- A lucratividade do remédio para a indústria farmacêutica é baixa a ponto de não haver interesse em investir nos estudos científicos e trâmites burocráticos necessários para resultar na inclusão da indicação da enxaqueca para o remédio. Não se esqueça que estudos científicos custam muito dinheiro e que remédios deixam de dar tanto lucro após alguns anos de mercado, quando cai a exclusividade de uso da patente e surgem os equivalentes genéricos; ou
- Se fosse posto à prova científica estatística rigorosa, o remédio falharia em demonstrar os índices de eficácia e segurança mínimos exigidos pelas agências regulamentadoras (no Brasil, a Vigilância Sanitária), para que sua indicação no tratamento de enxaqueca pudesse constar na bula do remédio.
Nos casos em que é verdadeira a explicação n° 1, isso é um claro sinal de falta de mobilização por parte da comunidade médica dedicada à área de enxaqueca, em parceria com a indústria farmacêutica, para que sejam realizados os estudos necessários para a comprovação da eficácia e segurança daquele(s) remédio(s) no tratamento de enxaqueca, suficientes para incluir a indicação de enxaqueca na bula. É notório que o lucro da indústria farmacêutica está nos “produtos novos”, nos “lançamentos”, e não nas amitriptilinas da vida. Mas nesse caso, por que não há a menor manifestação de indignação e pressão das sociedades e associações médicas que lidam diretamente com a enxaqueca, no sentido de fazer constar no rótulo a indicação para enxaqueca daqueles remédios consagrados que todos esses médicos prescrevem, mais cedo ou mais tarde? Não seria isso importante para legitimar a ação do médico ao prescrever esse(s) remédio(s); e mais que isso – ajudar a legitimar a doença? Não seria importante essas organizações se manifestarem através de seus sites a esse respeito?
Nos casos em que é verdadeira a explicação n° 2, estaríamos vivendo uma farsa: uma situação em que todos os profissionais da área de enxaqueca pensam que aquele dado remédio novo de 150 reais a caixa, antidepressivo de última geração, poderia ser útil para a enxaqueca, quando na verdade falharia se fosse submetido aos rigorosos testes científicos necessários para comprovar sua indicação às agências regulamentadoras. Muito importante não confundir os vários indícios (artigos científicos publicados em revistas médicas e apresentações em congressos internacionais sugerindo possível ação do remédio na enxaqueca) com as evidências científicas necessárias para preencher os critérios das agências regulamentadoras para a inclusão da indicação da enxaqueca na bula) desse remédio.
A Grande Lista dos 5 Remédios Preventivos on-label Disponíveis Para Enxaqueca:
Sim, você leu certo: cinco. Apenas isso. Até a data da publicação deste artigo, em toda a história da medicina, apenas 6 (seis) drogas se encontram aprovadas pela agência regulamentadora norte-americana, FDA (Food and Drug Administration) para constar na bula a indicação para enxaqueca. Um deles, a metisergida, saiu do mercado inexplicavelmente, por isso a lista abaixo contém apenas os cinco restantes, em seus nomes genéricos:
- Propranolol
- Timolol
- Divalproato de sódio
- Topiramato
- Toxina Onabotulínica A
Sinto informar que qualquer outro remédio fora esses da lista acima, é off-label.
O Que Fazer?
Mais do que nunca é necessário que você seja um(a) consumidor(a) informado(a). Apesar da imensa maioria das prescrições de tratamentos preventivos para enxaqueca serem off-label, pouquíssimos pacientes sabem desse fato. Uma paciente me disse o seguinte: “A sensação é como se fôssemos todos ratos de laboratório, cobaias, utilizando drogas que nem ao menos sabíamos não ter sido aprovadas pelas agências regulamentadoras para uso específico na prevenção de enxaqueca.”
Embora a prescrição off-label envolva muitos remédios claramente eficazes para a prevenção da enxaqueca, fica-se à mercê do fato que, a depender das drogas utilizadas off-label, o paciente pode ficar exposto à possibilidade de efeitos colaterais aliados a ineficácia dessas drogas, perda de tempo e dinheiro, resultando em frustração. Muitos remédios caríssimos, por vezes prescritos off-label para enxaqueca, possuem pouquíssima evidência de eficácia para esta doença.
Crianças e Prescrição Off-Label
Crianças representam uma preocupação ainda maior, pois encontram-se tremendamente expostas a tratamentos off-label. Um determinado remédio, utilizado on-label num adulto, não significa necessariamente que esteja também on-label para crianças. Pelo contrário – a maioria dos remédios – estou agora falando em geral, e não só para enxaqueca – são prescritos off-label para crianças, simplesmente porque ainda não ocorreram estudos suficientes para comprovar a eficácia e segurança deles na infância.
Conclusões
Pessoalmente, este é um dos principais motivos pelos quais eu utilizo cada vez menos drogas no meu consultório. No meu dia-a-dia, a decisão de entrar com um tratamento mais agressivo somente ocorre na eventualidade de falha dos tratamentos menos agressivos, os quais, quando integrados às mudanças de hábitos e estilo de vida que sugiro no meu livro, costumam trazer resultados muito gratificantes. Mas nem eu, nem ninguém, escapamos da dificuldade de ter de prescrever off-label, por menos que seja, em se tratando de enxaqueca.
Não há obrigatoriedade do médico em alertar se a prescrição que ele está fazendo é on-label ou off-label. Se você leu este artigo com atenção, compreenderá que é perfeitamente aceitável e plausível prescrever off-label, especialmente quando esgotadas as alternativas on-label (o que pode ser fácil acontecer no caso da enxaqueca, onde a lista de remédios com indicação on-label cabe nos dedos de uma mão). Mas se você quiser, é seu direito perguntar a ele(a) se o remédio que está prescrevendo é on-label ou off-label para enxaqueca – e, é claro, deve-se discutir e deixar bem claro os benefícios versus riscos. A bula é importante SIM. Escrevi este artigo com o intuito de mostrar o quanto não sabemos sobre o tratamento da enxaqueca. Um pouco de humildade faz bem a todos nós!
Se você é médico, poderá gostar deste artigo: An Introduction to the Improved FDA Prescription Labeling.
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Página de Compra do meu Livro “Enxaqueca – Só Tem Quem Quer”
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