Metisergida (nome comercial Deserila), uma das drogas mais eficazes para o tratamento da cefaleia-em-salvas e algumas formas de enxaqueca, é retirada do mercado.
Aconteceu de um dia para o outro. Sem aviso prévio nem ao menos um recado do fabricante em respeito aos pacientes que se encontravam em tratamento. De repente a Deserila (metisergida) sumiu completamente das prateleiras.
Quem acompanha meu trabalho sabe muito bem que sou contrário a abordagens simplistas para o tratamento das doenças em geral e da enxaqueca em particular, baseadas unicamente na prescrição e uso isolado de drogas. Mas isso não deve ser confundido com “ser cegamente contrário” à prescrição e uso de drogas, quando realmente necessário, sempre como parte de uma ação conjunta envolvendo uma série de mudanças concomitantes nos hábitos e no estilo de vida, conforme explico no meu livro.
Normalmente, nos meus artigos, não dedico espaço à exaltação do lado benéfico das drogas, mas sim ao seu lado negativo, cono efeitos colaterais e riscos envolvidos no seu uso. Afinal, as informações sobre os benefícios são quase sempre exageradas, tendenciosas, e mais iludem que esclarecem.
Não existe “remédio fraco” ou “remédio forte”. O que existe é remédio adequado. Essa adequação varia de caso para caso, tornando extremamente perverso qualquer anúncio ou matéria sobre drogas e seus benefícios na mídia popular.
Para piorar, a mídia de massa dá atenção quase que exclusiva às “novidades”, querendo dizer “drogas novas” para o tratamento da enxaqueca (ou de qualquer doença). Essa ênfase vai de encontro direto aos interesses da indústria farmacêutica, pois as drogas novas (“lançamentos”) são propriedade exclusiva da indústria que detém a patente, o que permite ao fabricante comercializar o produto sem a preocupação de que algum concorrente pudesse vender o mesmo produto mais barato. Assim, o fabricante estipula o preço e detém o monopólio enquanto durar a patente. Uma vez vencida a patente (10 a 15 anos), o fabricante tipicamente perde a exclusividade, e portanto o interesse pela droga. Não importa se essa droga poderia ser adequada para o tratamento de muitas pessoas – a indústria perde o interesse e, dependendo, pode retirar a droga do mercado. A metisergida é um exemplo disso.
A metisergida foi descoberta na década de 1950 pelo neurologista italiano Prof. Federigo Sicuteri (1920-2003) (foto à direita), trabalhando em Florença para o laboratório Sandoz. Anteriormente, já se sabia que o LSD (droga ilegal, alucinógena) possuía, entre outros efeitos, fortíssima ação sobre o neurotransmissor serotonina, com efeito altamente benéfico para enxaqueca, porém inviável comercialmente devido ao seu efeito alucinógeno. Sicuteri fez várias experiências com moléculas modificadas de LSD, até que finalmente uma delas – a metisergida – bunanolamida do ácido l-metil-D-lisérgico (imagem à esquerda) – demonstrou ação ainda mais poderosa que o LSD sobre a serotonina, e além disso sem o efeito alucinógeno e vasodilatador do LSD. Sicuteri demonstrou a ação poderosa da metisergida em pacientes com enxaqueca e cefaleia-em-salvas e publicou seus achados em 1959 no International Archives of Allergy [Sicuteri F (1959) Prophylactic and Therapeutic Properties of l-methyllysergic acid butanolamide in Migraine. Int Arch All 15:300-307].
O lançamento da metisergida no mercado, em 1960, revolucionou o pensamento médico sobre a enxaqueca. Anteriormente, os médicos, predominantemente, viam a enxaqueca como um fenômeno psicológico, psiquiátrico ou psicossomático, encaminhando os pacientes enxaquecosos para tratamentos com profissionais de saúde mental. Foi a metisergida quem modificou esta visão: a partir de sua introdução no mercado, ficou claro que bastava ao médico tratar o paciente com drágeas de metisergida de uso diário, e as dores de cabeça simplesmente desapareciam em menos de uma semana. Aliado a esse enorme efeito, o conhecimento que a metisergida atua sobre os receptores periféricos de serotonina modificou de uma vez e para sempre a visão da enxaqueca, de um problema psicológico abstrato para um problema científico concreto.
Poucos anos mais tarde, descobriu-se que infelizmente o uso prolongado e ininterrupto de metisergida poderia causar consequências muito graves e até fatais para cerca de 1 em cada 2.000 casos. Isso levou à conscientização, no meio médico especializado, de que a metisergida não deve ser indicada (portanto é contraindicada) para uso prolongado (por mais de 6 meses no máximo). É claro que existem possíveis (e restritas) exceções, assim como uma série de possíveis monitoramentos clínicos e cuidados específicos para acompanhar esses casos excepcionais. E é para destrinchar toda essa complexidade de indicações, contraindicações, efeitos adversos e monitoramentos, que existe o médico!
A metisergida foi o primeiro – e permaneceu desde então como o único – medicamento até hoje descoberto especificamente para o tratamento preventivo da enxaqueca e cefaleia-em-salvas. Todos os outros remédios até hoje utilizados para tratamento preventivo da enxaqueca e cefaleia-em-savlas foram originalmente descobertos para o tratamento de outras doenças e acabaram sendo “emprestados” para o tratamento profilático dessas dores de cabeça.
O desaparecimento da metisergida não foi e nem será divulgado pela grande mídia, mas na minha opinião é a notícia mais importante na história do tratamento da cefaleia-em-salvas e enxaqueca desde o lançamento da mesma metisergida em 1960.
A dor de cabeça da cefaleia-em-salvas é, de acordo com os conhecimentos da medicina, a dor mais forte que existe. Mais forte que cólica renal, mais forte que a dor de um parto complicado, mais forte que qualquer dor até hoje registrada e descrita. Felizmente é rara, ocorrendo apenas em uma a cada 40.000 pessoas, na maioria homens acima dos 30 anos. Cada crise de cefaleia-em-salvas têm duração entre 30 minutos e 2 horas cada uma, sendo que o doente pode apresentar até 5 dessas crises num único dia. Para a maioria dos casos de cefaleia-em-salvas, a metisergida é um remédio de eficácia espetacular: basta iniciar o tratamento e as crises desaparecem. Crises que de outra forma surgiriam várias vezes ao dia, interrompendo o sono, o trabalho, a vida familiar, fazendo o indivíduo se sentir com vontade de tirar a própria vida (a cefaleia-em-salvas é a única dor de cabeça que pode, efetivamente, levar ao suicídio), simplesmentedesaparecem na maioria dos pacientes tratados com doses adequadas de metisergida. E para a maioria dos portadores de cefaleia-em-salvas, o uso de metisergida não precisa ser prolongado além dos 6 meses críticos, pois cada episódio de cefaleia-em-salvas costuma durar entre algumas semanas e poucos meses, com intervalos sem dor que costumam variar entre vários meses a vários anos (que portanto não necessitam tratamento nenhum) até o surgimento do próximo episódio.
O que será desses doentes?
Existem outros remédios para o tratamento profilático de cefaleia-em-salvas, mas nenhum tão eficaz e seguro quanto a metisergida. Alguns exemplos: altas doses de anticonvulsivantes, altas doses de lítio, altas doses de verapamil, que podem ser prescritos isoladamente ou em associação, podem ter bom efeito profilático na cefaleia-em-salvas – porém não costumam possuir, nem de longe, a mesma eficácia estupenda que a metisergida, e além disso possuem um perfil de efeitos colaterais muito mais complicado de gerir e monitorar que a metisergida. Simplesmente pode não haver um medicamento substituto apropriado, para a metisergida na cefaleia-em-salvas.
Para esses doentes, a retirada da metisergida do mercado é definitivamente uma tragédia.
Alguns casos específicos de enxaquecas muito severas, e que também poderiam – dentro de uma estratégia de tratamento bem elaborada – se beneficiar imensamente de um período de poucos meses de tratamento profilático com metisergida. Para esses individuos, o tratamento será mais difícil, porém, provavelmente não intransponível. Este, infelizmente, poderá não ser o caso para muitos doentes de cefaleia-em-salvas atualmente.
Historicamente, a descoberta e o uso da metisergida, de fato, ajudaram a moldar a medicina contemporânea. A metisergida, que tanto representou para o avanço dos estudos e do alívio da enxaqueca e da cefaleia-em-salvas, acaba de ser descontinuada, silenciosamente, após uma permanência de 52 anos no mercado mundial, sem deixar substituto à altura.
Entristece-me o silêncio, a falta de reação do meio médico, inclusive das organizações que representam mundo afora os interesses dos portadores de cefaleia-em-salvas e enxaqueca.
Escrevo estas linhas para registrar meu profundo respeito e gratidão a esta droga historicamente tão importante para a medicina, tão útil e eficaz para o alívio de tantas dores que, de outra forma, teriam tornado insuportáveis as vidas de incontáveis seres humanos neste último meio século – mas que hoje, inexplicavelmente, sai de cena.
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